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Diagrafia #3 – Estreia de “Ela é uma música” – 10Maio2019

Diagrafias

A ideia nas Diagrafias é fazer etnografia de um dia específico, sobre uma comemoração pública ou uma iniciativa privada, a situar no tempo e no espaço. O exercício baseia-se na observação etnográfica num só dia, sem possibilidade de continuar a exploração do mesmo tema noutra ocasião. O resultado formal deve ter um texto no qual se transcreve tudo o que se anotou no caderno, junto com gravações de som ambiente.

A transcrição das notas etnográficas quer-se o mais próximo possível do original, ou seja, com poucas correções formais e factuais. Um dos intuitos é apenas de revelar um olhar etnográfico sobre as ações sociais durante um dia, sem que haja comentários ou aprofundamentos analítico-teóricos. É a revelação da forma mais crua de observações etnográficas, deixando ao leitor a liberdade de interpretar, de querer analisar e questionar.

A nível do método e da forma, as Diagrafias estão próximas do que é feito em etnografia com “descrição densa” (Geertz, 1973), mas também dos documentários de Wiseman, Rouch ou Depardon, e da mais recente escrita da antropóloga Françoise Héritier (2012, 2017). O resultado não tem qualquer pretensão literária, embora nele se revele uma estética muito própria à escrita de notas curtas sobre interações sociais e sobre os contextos nas quais se realizam.

Esta terceira Diagrafia do projeto ArtCitizenship foi feita sobre a estreia do filme “Ela é uma música”, de Francisca Marvão, no Festival Indie Lisboa. Na sinopse está escrito: “As miúdas andam por aí… a rockar como se não houvesse amanhã! ‘Ela é uma música’ é uma viagem de descoberta pelo mundo do rock em Portugal, na voz das suas ilustres desconhecidas: as mulheres.” Propomos que oiça o som ambiente durante a leitura.


Diagrafia #3

Estreia do filme “Ela é uma música”

Festival Indie Lisboa, Cinema São Jorge

Sexta-feira, 10 de maio 2019

18h41, Avenida da Liberdade em Lisboa, face ao Cinema São Jorge.

*O som desta Diagrafia #3 é uma montagem do que foi gravado antes e durante a projeção do filme. 

As escadas do cinema estão cheias de gente. Está tudo a conversar e a fumar.

Algumas pessoas estão de pé, no passeio. Os postes de sinalização servem de encosto.

Há muitos reencontros. Pessoas a abrir os braços desde longe, há sorrisos, gargalhadas até à união dos corpos.

Algumas pessoas estão sós, de queixo para cima, à procura da companhia.

No passeio em frente ao cinema passam grupos de turistas.

No canto direito das escadas do São Jorge, entre o pilar e a parede, duas jovens entreajudam-se para enrolar uma ganza. Uma delas tem o braço engessado.

O balcão que dá para a avenida da Liberdade, no 1º andar do São Jorge, tem bastante gente. Há copos e cigarros nas mãos. O ambiente parece ser relaxado lá em cima.

Para subir as escadas até ao hall, onde estão a bilheteira e o bar, há duas passagens por entre as pessoas sentadas aleatoriamente. Uma passagem em S e a outra em diagonal. Nota-se a fila para a bilheteira do lado esquerdo, é longa e passa por entre pessoas que formaram grupos de conversa.

Francisca Marvão, a realizadora do filme que vai ser projetado nesta sessão do Festival Indie Lisboa, está junto ao fim da fila da bilheteira. Uma conhecida cumprimenta-a, “– É hoje! Parabéns!”

Há muitas pessoas que revelam ter atenção à sua apresentação visual, ao seu estilo, à sua imagem. As suas escolhas chamam a atenção: sapatos vermelhos; óculos grandes, circulares e cor de laranja; cabelos presos, mas de uma forma que parece propositadamente desleixada; homens de chapéu; uma afro vigorosa; cabelos pintados de azul, de vermelho, de amarelo. Homens e mulheres têm cortes de cabelo à “tigelinha”, pintados, similares à cantora portuguesa Surma.

A fila para a bilheteira mantém-se longa.

Há muitas figuras conhecidas do meio artístico lisboeta, particularmente da música dita mais underground.

O bar do lado oposto à bilheteira também está lotado de pessoas. De copo na mão, juntam-se em torno das mesas altas. Há copos e pacotes de comida vazios em cima das mesas.

Encontros apressados entre conhecidos. Está na hora de subir para a sala principal. Oiço duas pessoas a dizer: “– Tens bilhete?”, “ – Sim!”, “ – É que tenho um a mais”.

No hall, depois da bilheteira, vende-se o merchandising do Festival.

Ao fundo, junto ao WC feminino, está um bancada só para distribuir os convites.

O hall esvazia-se porque as pessoas vão subindo.

Há duas pessoas que olham para a porta de entrada de queixo levantado. Parecem estar à espera de amigos.

Lá em cima amontoam-se as pessoas para entrar na sala principal onde o filme será projetado. A fila tem a forma de U, embocando nas duas entradas laterais.

As pessoas que estiveram sentadas nos sofás do bar neste 1º andar começam a levantar-se para entrar. Ficam os copos vazios.

Há conversas dinâmicas na fila para entrar na sala.

Continuam a haver cabeças à procura de amigos.

Uma pessoa grita o nome de outra para que venha juntar-se à fila.

Vão entrando na Sala 1 do Cinema São Jorge.

Barry White está a soar nas colunas do bar do 1º andar.

A fila já não tem o formato de U. São agora duas filas pequenas, em frente a cada porta.

A sala é muito grande. Os presentes enchem metade da sala. Há muita conversa enquanto as pessoas se vão instalando nos lugares livres. O ambiente é vivo, quente. Deve ser isto o ambiente de uma avant-première!?

Ao fundo, no palco, está projetado um cartaz do Festival Indie Lisboa. Na sala há um jovem rapaz que trabalha para o São Jorge. Está vestido de preto e responde às perguntas de uma pessoa: “– Sim podem sentar-se lá em cima.”

Mais reencontros na sala: “– Oláaaa!”

Visto da última fila, de um banco mais à direita, vêem-se muitos telemóveis ligados.

Sobe ao palco um senhor, de microfone na mão, provavelmente o diretor do festival. Pede à realizadora do filme, Francisca Marvão, para que suba ao palco e venha falar do que vai ser projetado, sem deixar de dizer a todos os presentes que “– O filme só chegou hoje”. Isso lança uma gargalhada geral.

Minuto 13.30′ da gravação: quando Francisca Marvão sobe ao palco a sala toda aplaude e há gritos festivos, junto com gargalhadas e muitos sorrisos.

Francisca Marvão não parece confortável no palco, nem com o microfone na mão. Explica a origem do filme.

A realizadora chama ao palco todas as mulheres que fizeram parte do filme. Depois de uma rápida hesitação, há gritos, aplausos, abraços em palco. Um quinto dos espectadores estão agora no palco, cerca de 40 mulheres e 2 homens.

Longos aplausos.

“– Vamos ver o filme?”, pergunta Francisca Mourão sorrindo, “– Espero que gostem!”

As pessoas voltam aos seus lugares. A sala fica escura, o filme vai começar.

Silêncio na sala.


Minuto 19’ da gravação

Inicio da projeção do filme: “Ela é uma música”

Durante o filme, no escuro, tento escrever duas citações:

1) “– Se tocasse numa banda só de mulheres, as conversas na carrinha seriam diferentes.”

2) Uma baterista fala de si própria dizendo sempre: “– Um gajo, não tem que…”

*A partir do minuto 19, a gravação sonora inclui o inicio e o fim do filme. Entre os dois recortámos algumas secções sonoras aleatórias  para se sentir o ambiente do filme e da sala. 

…


Minuto 40.35’ da gravação

Fim do filme

Longos aplausos, gritos e assobios enquanto passa o genérico. Sentem-se as emoções. Celebram-se as artistas que são as mulheres portuguesas.

À saída há novos reencontros, abraços e beijos.

As “Elas” que participaram no filme estão sorridentes, são abraçadas.

A realizadora é cercada à porta da sala. Beijos, sorrisos, gargalhadas.

“– Chorei tanto no final do filme, a música era linda!”, diz uma pessoa.

“– O filme está muito fixe”, “– Mas o som podia estar melhor”, “– Yah, mas isso resolve-se agora”, discutem duas pessoas.

Em frente à sala 1 formam-se pequenos grupos. As pessoas estão muito juntas e parecem estar a partilhar opiniões sobre o filme.

A fila para saudar a realizadora aumenta. Ela ainda está à porta da sala.

Francisca Marvão consegue mover-se para o hall em frente à sala. Até lá, abraça várias pessoas.

Três senhoras com mais idade, por volta dos 60 anos, vêm ter com a realizadora. Parecem conhecê-la. Uma delas diz: “– Olha, no fim apareceu a filha de uma amiga e a sobrinha da Lizita.”

As pessoas vão para a entrada do Cinema São Jorge. Juntam-se aí para fumar e conversar sobre o filme. Criam-se planos para os jantares e a noite a vir.

Progressivamente, a realizadora e as músicas que vão tocar mais tarde na Casa Independente, escapam para irem jantar a um local reservado. Descem pelos passeios da avenida da Liberdade. Braços aos ombros, mãos no ar, movimentos de anca em calças de couro pretas. Ouvem-se gargalhadas enquanto desaparecem na noite.

Diagrafia #3

10 de Maio 2019 , Lisboa

Projeto ArtCitizenship

Alix Didier Sarrouy – CICS.NOVA

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