Diagrafia #4 – Justiça Climática Caldas da Rainha – 24Maio2019
Diagrafias
A ideia nas Diagrafias é fazer etnografia de um dia específico, sobre uma comemoração pública ou uma iniciativa privada, a situar no tempo e no espaço. O exercício baseia-se na observação etnográfica num só dia, sem possibilidade de continuar a exploração do mesmo tema noutra ocasião. O resultado formal deve ter um texto no qual se transcreve tudo o que se anotou no caderno, junto com gravações de som ambiente.
A transcrição das notas etnográficas quer-se o mais próximo possível do original, ou seja, com poucas correções formais e factuais. Um dos intuitos é apenas de revelar um olhar etnográfico sobre as ações sociais durante um dia, sem que haja comentários ou aprofundamentos analítico-teóricos. É a revelação da forma mais crua de observações etnográficas, deixando ao leitor a liberdade de interpretar, de querer analisar e questionar.
A nível do método e da forma, as Diagrafias estão próximas do que é feito em etnografia com “descrição densa” (Geertz, 1973), mas também dos documentários de Wiseman, Rouch ou Depardon, e da mais recente escrita da antropóloga Françoise Héritier (2012, 2017). O resultado não tem qualquer pretensão literária, embora nele se revele uma estética muito própria à escrita de notas curtas sobre interações sociais e sobre os contextos nas quais se realizam.
Esta quarta Diagrafia do projeto ArtCitizenship foi feita sobre a manifestação da juventude das Caldas da Rainha que participou numa greve escolar a propósito da Justiça Climática, dia 24 de Maio 2019. A iniciativa envolveu cidades de todo o mundo através do apelo iniciado por Greta Thunberg, jovem ativista da Suécia. Propomos que durante a leitura da observação etnográfica oiça o som da manifestação com auscultadores.
Diagrafia #4
Manifestação pela Justiça Climática
Greve escolar por parte da juventude nas Caldas da Rainha
Sexta-feira, 24 de maio 2019
10h19
Frente à Praça de Touros das Caldas da Rainha
Apresento-me a dois dos organizadores, com quem tinha estabelecido contacto por via do Facebook. Enquanto conversamos, um agente da polícia pergunta quem organiza a manifestação. Uma das adolescentes é designada e vai ter com o agente. O polícia veio de bicicleta, está equipado com capacete, calções, pólo azul claro, luvas de ciclismo e um cinto cheio de bolsas. Enquanto fala com a jovem é muito sorridente e lança piadas para descontrair o ambiente. A adolescente não parece estar muito confortável e não sabe como deve reagir. Depois de explicar as regras da manifestação e de dizer que só podem começar a partir das 10h30, o agente da polícia pede desculpa pelo seu jeito descontraído e diz que é uma brincadeira, “– É só para vos testar”. A jovem sorri e volta a grupo.
A esta hora ainda estão poucos jovens presentes, cerca de 30.
Parece-me que as idades vão dos 8-9 aos 17-18 anos.
Uma senhora acompanha os seus dois filhos pré-adolescentes. Já têm os seus cartazes nas mãos.
Na calçada, junto à parede da Praça de Touros, está um monte de cartazes prontos a serem usados. São de cartão, pintados e com slogans coloridos. Alguns têm figuras desenhadas.
A faixa principal já está a ser segurada por um rapaz e por uma rapariga, um em cada ponta. Também já há um pequeno megafone a ser testado.
Um dos organizadores da marcha é baterista. Trouxe três partes da sua bateria: dois timbalões e uma tarola. É fixada uma fita em cada instrumento, para possam ser tocados durante a marcha. O dono pega na tarola e pergunta em voz alta se alguém sabe tocar. Uma amiga diz que sim e é ensinada por ele. Riem-se durante esta partilha.
Outras percussões são testadas.
O resto dos cartazes que foram feitos previamente é distribuído pelos presentes.
Há mais jovens a juntarem-se ao passeio em frente à Praça de Touros, chegam em grupos.
No chão resta apenas um cartaz. É muito pequeno e nele está escrito “SOS”, com o O substituído pela palma de uma mão.
Há grupos de jovens a chegar de todas as ruas adjacentes.
O passeio enche-se de gente.
O agente da polícia continua sorridente e prestável. Vai ter com os grupos que estão na estrada e pede para que se metam no passeio, “– Pra garantir a vossa segurança”.
Um manifestante troca o seu timbalão pela tarola.
Uma adolescente vai ter com o agente da polícia e explica que encontrou o cão que leva na trela. O agente diz-lhe que deve ir à esquadra com o cão. A jovem parece atenciosa, mas desesperada.
Do outro lado da rua instalam-se alguns curiosos. São sobretudo idosos que olham para o grupo de jovens que se vai formando.
Dentro da massa de gente que se vai formando no passeio da Praça de Touros há pequenos grupos em conversa. Há também um grupo mais isolado, parecem ser mais jovens que os outros.
Há adultos presentes. Algumas parecem-me ser as mães dos pré-adolescentes e adolescentes presentes. Outros parecem-me ser professores ou membros de partidos e de associações locais ligadas a causas ambientais e juvenis.
A adolescente que encontrou o cão vem ter comigo. Tendo o meu caderno de campo na mão, ela pergunta-me se sou jornalista e se posso ajudar a divulgar a situação do cão. Encontrou o cão esta manhã na sua escola, a D. João II.
Estão agora presentes cerca de 120 pessoas. Chega mais um grupo, de queixos para cima, à procura dos amigos.
Foi instalada uma coluna de som. Começa a soar o “Grândola vila morena”. Todos acompanham Zeca Afonso. Alguns batem palmas.
Uma das senhoras presentes no meio do grupo filma tudo com o seu telemóvel. Sorri. Alguns jovens fazem-lhe um “Olá!” com a mão direita.
10h47 – O agente da polícia contacta os colegas por telemóvel e informa que ainda está em frente à Praça de Touros. Enquanto isso faz sinal para que grupos de manifestantes saiam da estrada e se metam no passeio.
Zeca Afonso continua a cantar: “Eles comem tudo”.
Uma das organizadoras da manifestação pega no microfone que está ligado à coluna e informa: “– Vão ao Insta da greve para ver a lista das frases (slogans), foi publicada”
Há aqui algumas pessoas que são muito jovens, por volta dos 7 anos de idade. Estão acompanhadas. Também está presente uma mãe com bebé ao colo.
Um jovem tem o seu skate (longboard) à mão.
Mochilas Eastpak às costas, de forma muito laça.
A maioria dos presentes está de calças de ganga e tem ténis brancos (muitos da Adidas).
Houve-se Rap português numa pequena coluna portátil.
10h55 –Trânsito parado. Começa a manifestação. A tarola lança a marcha.
A massa de jovens avança rapidamente e desce a rua da frente. Ocupam a largura toda. Uma senhora de idade está em contramão e tem dificuldade em avançar no meio da multidão.
É uma rua com bastante comércio. Os trabalhadores e os clientes vão até à portas de entrada para assistir à manifestação. Há olhares de curiosidade e há sorrisos. Alguns parecem demorar mais tempo para perceber a razão desta manifestação.
“O poder das pessoas é maior que as pessoas de poder” (frases dos posters)
“Climatic justice now”
“Já não há tempo para pensar, só acionar”
“It’s time”
“Oh Costa, limpa a costa”
“Se o clima fosse um banco, já estava salvo”
“O clima está mudando mais rápido que as ações”
“É mais fácil imaginar o fim do mundo, que o fim do capitalismo”
“Eu mereço um futuro”
Há quatro megafones e três percussões a serem utilizados.
“Nunca se é demasiado pequeno para se fazer a diferença”
“Para quê ir à escola se não vamos ter futuro?”
“O planeta é só um”
“Não há planeta B”
“Message in the bottle”
“Penso, logo protesto”
A senhora do bebé ao colo marcha no fim da manifestação.
Durante a marcha, um pequeno grupo chateia os que estão à sua frente batendo nas suas cabeças com os cartazes.
11h16 – Chegada à praça onde se vende fruta e legumes. A marcha contorna as bancadas.
Os presentes ficam a olhar com curiosidade. Parece-me haver caras de orgulho e felicidade.
Dão a volta à praça toda e entram numa das ruas pedonais que tem mais comércio.
Aí, fazem um sitting frente à livraria Parnaso: todos se sentam no chão e levantam-se progressivamente ao ritmo da tarola enquanto cantam; ao estarem novamente de pé saltam e gritam de braços no ar.
“Help me”
Há sempre gente à porta das lojas a observar o que se passa.
Um guitarrista que normalmente toca nesta rua é obrigado a parar e a “refugiar-se” no passeio de uma das lojas. Está sentado nesse passeio, de guitarra na mão e acompanha o ritmo da manifestação batendo com a mão direita no corpo da guitarra.
Ao megafone ouve-se: “– E com a poluição o que é que acontece?”, “– Andamos para trás”. Todo o grupo de manifestantes anda para trás enquanto responde.
Há humor, há risos, há brincadeira (faz-me pensar em todos os escritos sobre a noção de “play” nas manifestações).
E de repente, os megafones convocam uma corrida para a frente. Correm a rir e a gritar. Tem um efeito forte.
“# faz pelo clima”
Novo sitting. Todos sentados no chão.
“– O que é que foi feito desde o 15 de março?” (megafones)
“– Nada!” (manifestantes em conjunto)
“– Nada mudou” (repetem uma dezena de vezes enquanto se levantam progressivamente)
“– Sem políticas ambientais, o que é que acontece?”, “– Voltamos para trás, voltamos para trás” (andam para trás enquanto gritam a resposta).
E, de repente, uma vez mais, todos correm para a frente.
O polícia que estava a controlar os carros é completamente ultrapassado pelo movimento incontrolável da multidão. Há um certo perigo envolvido devido a um carro que vinha nesta direção, mas o condutor percebeu a situação e travou calmamente. A multidão passa pelo agente da polícia enquanto este ainda tem os braços abertos em sinal de espanto.
Chegamos à praça onde se encontra a Câmara Municipal de Caldas da Rainha.
“– O que aconteceu depois do 15 de março!?”, “– Nada” (respondem todos sentados nas escadas da Câmara). Começa o sinal dado pela tarola e todos se levantam seguindo o seu ritmo em aceleramento.
“– O povo unido jamais será vencido” x 5
A escadaria da Câmara Municipal das Caldas da Rainha está completamente cheia. Do seu lado esquerdo está uma escultura de Zé Povinho (sem fazer o manguito), protegida por uma estrutura de vidro transparente.
“– Oiçam a nossa voz, o futuro somos nós!”
“O capitalismo não é verde”
“Warning – Warming”
Nas janelas do 1º e 2º andar vêem-se funcionárias da Câmara a filmar o que se passa cá em baixo.
“Justiça climática já”
Novo sitting nas escadas da Câmara Municipal.
Lá em cima juntam-se mais funcionárias às janelas. São só senhoras.
No cimo da escadaria, uma das organizadoras da manifestação faz um discurso ao microfone. Usa o telemóvel para ler o seu discurso. “– Os mais afetados são aqueles de quem a palavra menos conta”. No final há uma ovação.
O Presidente da Câmara Municipal desceu para acolher os manifestantes: “– Bem vindos à Câmara Municipal”. No seu discurso faz uma balanço da situação municipal, mas rapidamente fala sobre as responsabilidades ao nível nacional e até aos vários níveis internacionais. Isso não cai bem nos ouvidos de alguns dos presentes. Final do discurso com aplausos.
Voltam os slogans.
Organizadores perguntam se alguém quer usar o microfone para discursar.
Começam os discursos individuais. Reclamações porque não se ouve nada com o microfone. Tem de ser bem posto em frente à boca.
Uma das oradoras prefere gritar do que falar ao microfone. Isso cria muito entusiasmo nos manifestantes. Grita o seu discurso com emoção. Várias vezes é obrigada a recuperar o fôlego.
Vários jovens fazem discursos. Aplaudidos ao pegarem no microfone. Não me parecem tímidos, os discursos são improvisados, articulados e sentidos.
Nos seus discursos, pegam nas palavras do Presidente da Câmara para contradizê-lo. Explicam que não podemos dizer que a responsabilidade não é nacional. Dão os exemplos do aeroporto no Montijo e dos furos para petróleo e gaz no Alentejo e no Algarve. Também estão contra o argumento internacional do Presidente quando diz que a grande responsabilidade é da China e dos EUA. A responsabilidade começa aqui, “– Em cada um de vocês”, insiste uma das líderes.
Outra das organizadoras da manifestação diz ao microfone que a luta pelo clima também é uma luta de carácter social, pela igualdade de género, pelas minorias, “– Porque o planeta é de todas e de todos!”.
Um dos adultos que acompanhou a marcha toda pede o microfone: “– Peçam aos vossos pais para votar neste domingo para a eleições europeias!”
Começa a tocar o “Grândola vila morena”. Todos cantam. Há punhos no ar.
Progressivamente forma-se um círculo na calçada em frente à escadaria. No centro, na calçada, são depositados todos os cartazes da marcha, com os slogans virados para cima.
Ainda ao microfone:
“– Fim às touradas”
“– Fim à industria animal”
“– Não à carne”
Acaba a manifestação. Ao megafone faz-se um apelo para aqueles que precisam de receber a autorização/comprovativo de participação na manifestação. Cria-se uma grande fila. Ao fim de pouco tempo já não há cópias suficientes. Os organizadores marcam num caderno o número de pessoas em falta, “– Fila única, por favor!”.
Os organizadores da manifestação estão juntos e conversam no cimo da escadaria. Há um adulto com eles. Fala da sua experiência no ativismo ambiental.
12h38 – Os funcionários da Câmara Municipal saem para ir almoçar.
Juntam-se os cartazes e limpa-se o chão.
Um dos percussionistas senta-se no cimo da escadaria. Conversa e descanso.
Dois adultos vão ver os cartazes deixados no chão. Um deles escolheu um cartaz e diz, “– Bué bom!”. No cartaz está escrito: “Oh mar salgado, quanto do teu sal, É plástico de Portugal?”
Há conversas sobre onde almoçar. Os jovens manifestantes dispersam-se em pequenos grupos.
Diagrafia #4
Manifestação Justiça Climática
Juventude das Caldas da Rainha
Projeto ArtCitizenship
Alix Didier Sarrouy – CICS.NOVA