Diagrafia #6 – Companhia Hotel Europa – Lx, 15abr2020
Diagrafias
A ideia nas Diagrafias é fazer etnografia de um dia específico, sobre uma comemoração pública ou uma iniciativa privada, a situar no tempo e no espaço. O exercício baseia-se na observação etnográfica num só dia, sem possibilidade de continuar a exploração do mesmo tema noutra ocasião. O resultado formal deve ter um texto no qual se transcreve tudo o que se anotou no caderno, junto com gravações de som ambiente.
A transcrição das notas etnográficas quer-se o mais próximo possível do original, ou seja, com poucas correções formais e factuais. Um dos intuitos é apenas de revelar um olhar etnográfico sobre as ações sociais durante um dia, sem que haja comentários ou aprofundamentos analítico-teóricos. É a revelação da forma mais crua de observações etnográficas, deixando ao leitor a liberdade de interpretar, de querer analisar e questionar.
A nível do método e da forma, as Diagrafias estão próximas do que é feito em etnografia com “descrição densa” (Geertz, 1973), mas também dos documentários de Wiseman, Rouch ou Depardon, e da mais recente escrita da antropóloga Françoise Héritier (2012, 2017). O resultado não tem qualquer pretensão literária, embora nele se revele uma estética muito própria à escrita de notas curtas sobre interações sociais e sobre os contextos nas quais se realizam.
Esta sexta Diagrafia do projeto ArtCitizenship é sobre um ensaio da Companhia Hotel Europa, no Teatro Thalia, dia 15 de Abril 2020. Para as comemorações do 25 de Abril, e em pleno estado de emergência devido ao COVID-19, preparava-se um espectáculo sobre a luta contra o fascismo em tempos de ditadura portuguesa.
Propomos que durante a leitura da observação etnográfica oiça o som com auscultadores.
Diagrafia #6
(pre)texto
Esta diagrafia da companhia Hotel Europa em processo de criação e de ensaio é particular porque o espetáculo está ele próprio baseado em recolhas etnográficas. Consiste num vasto conjunto de entrevistas, com tempo e profundidade, feitas a pessoas que participaram na luta contra a ditadura em Portugal. São, na sua maioria, pessoas anónimas. Há histórias heroicas, a diferentes escalas, em vários domínios e múltiplas ocasiões. Há testemunhos da proximidade humana, da sua sensibilidade, do poder da coragem e da devoção. Há histórias com audácia, aquela que ficou no segredo do momento, que durou segundos, que consistiu num olhar, num sinal com a mão, num abraço proibido na calçada, ou num improviso instintivo que salva a pele.
Ao escutar o material destas entrevistas feitas por André Amálio, codiretor, encenador e intérprete da companhia Hotel Europa, apercebemo-nos que a arte da entrevista, da conversa, do estabelecimento de confiança, do deixar falar e saber ouvir, é conseguida de muitas formas, e que nós, cientistas sociais, temos a aprender com os artistas que dominam estas ferramentas à sua maneira.
Outro ponto de provocação consiste na forma como os artistas utilizam a matéria bruta e sensível das entrevistas, para depois transmitir o seu sumo a espectadores variados, por via dos palcos das artes do espetáculo. A comunicação, a transposição e a reprodução, como capacidades às quais o mundo académico não deveria escapar quando quer atingir públicos fora do seu círculo. O teatro documental de Hotel Europa consegue tudo isso, mediando a voz e o corpo dos entrevistados que ganharam confiança ou que sentiram a necessidade urgente de se exprimir sobre temas tão profundamente marcantes, mas por vezes refundidos. A importância do testemunho, aquele que se liberta do possível peso da memória, é fundamental, nomeadamente para os que não viveram em tempos de ditadura, de polícias secretas, de moral castradora, em 40 anos de confinamento físico e intelectual.
Quarta-feira, 15 de abril 2020
(clikar no play para ouvir o som ambiente enquanto lê o texto)
9h00 da manhã
Apanho boleia de Joana Guerra (violoncelista, cantora, performer) até ao local de ensaio da companhia Hotel Europa – o Teatro Thalia, nas Laranjeiras, Lisboa.
Joana explica, “– Não tenho aqui o meu disco dos ASIMOV com o qual costumo começar as manhãs, por isso vou pôr um CD do Lourenço Crespo que me anima.” As estradas estão vazias, nunca foi tão fluido entrar em Lisboa a estas horas. “– Mas alguns condutores aproveitam-se para conduzir muito mal!”, alerta Joana.
Hoje é o terceiro dia de ensaios para um espetáculo da companhia Hotel Europa, encomendado pelo gabinete do Primeiro Ministro, sob conselho e curadoria dxs diretorxs dos quatro Teatros Nacionais de Portugal. É uma proposta peculiar, surge na urgência do contexto COVID-19, implicando a filmagem do espetáculo para que seja transmitido na televisão dia 25 de abril.
Neste período de confinamento obrigatório, em pleno estado de emergência, Joana admite o prazer que tem em poder sair de casa e passear de carro, tudo lhe parece mais intenso: “– O verde dos campos à beira da autoestrada, a velocidade das nuvens ao vento, o betão cinzento da cidade.” Há três dias que espera ser parada pela policia e mostrar a “carta convite” que tem do gabinete do Primeiro Ministro (PM). Há expectativa e gargalhadas neste velho VW Polo a caminho do Teatro Thalia.
9h50 – Teatro Thalia, Laranjeiras, Lisboa
Ao estacionar o carro no parking do Teatro, cruzamos a produtora. Tem uma máscara posta. Levantam-se os braços para cumprimentar e adivinha-se um sorriso graças ao prolongamento deste até aos olhos.
As grandes portas do Teatro são abertas com a manga da camisola esticada até à mão. Entramos, sou apresentado às pessoas que não conheço. Saudações distantes. Há que tirar os sapatos. É um espaço muito bonito, um edifício histórico, completamente restaurado mas mantendo as marcas do tempo. O pé direito deve ter uns 30 metros. O “palco” central deve ter cerca de 50 m2. A iluminação é subtil, evidenciando as paredes centenárias.
Os artistas vão chegando. Há marcas dos ensaios nos dois dias anteriores: mesas cheias de material; cadeiras espalhadas; fichas elétricas esticadas; e uma zona dedicada às duas crianças que acompanham o processo – filhos do casal que dirige a companhia Hotel Europa e que encena este espetáculo: André Amálio e Tereza Havlíčková.
André propõe começar pelos figurinos. Trouxeram propostas de casa. Cada canto serve de lugar improvisado para mudar de roupa. Enquanto isso a bebé e o irmão estão entretidos na confortável zona que lhes é reservada. O irmão é muito atencioso.
Cada um desfila o seu figurino. André está de fato, camisa branca e agora de bebé ao colo enquanto comenta o que lhe mostram os performers.
A produtora pede mais duas mesas ao técnico do Teatro. Por gentileza, uma delas é para mim.
É tirada uma fotografia de todos em linha com os seus figurinos.
O irmão dá voltas à sala imitando um cavalinho enquanto o pai canta, “– A correr, cha la la”.
Surge a questão da maquilhagem. O que fazer para as gravações de vídeo? Quem tem jeito e material?
Tereza vai amamentar a sua bebé. André propõe que os performers usem este momento para reverem os seus textos e coreografias. Cada um vai para um canto improvisado e daí começa a caminhar de texto na mão. São 6 performers no total. Cheila Lima, está de costas, concentrada, protegida pela sua grande afro.
Passam 20 minutos. Começa o aquecimento liderado por Tereza. Intenso e preciso, com muitos alongamentos, inspirações e expirações profundas. “– Abrir os braços, abrir a boca. Deixar cair os braços e deixar sair o ar todo. Torcer o torax. Torcer a anca. Tornozelos. Manter equilíbrio numa perna. Confortable pain.” O pequeno irmão imita os adultos em aquecimento.
A bebé acorda, mas o irmão corre até ela para reconfortá-la e garantir que volta a adormecer. É o que acontece em poucos segundos.
O aquecimento continua. Tereza pede para que se ponham de gatas, mas um dos performers questiona a limpeza bacteriana e virológica do chão. O diretor garante que foi tudo limpo às 6h da manhã.
O aquecimento acaba. Cada um vai lavar as mãos. Cheira a gel desinfetante.
Começa o ensaio.
Pedro Salvador está à guitarra amplificada. “– All together”, coreografia de mãos e braços em loop. Procura de posicionamentos. Confirmações.
Punhos no ar, “– 25 de Abril sempre, fascismo nunca mais!”
Avançam para outra parte do espetáculo que precisa de mais afinações.
De máscara na boca, de luvas azuis e desinfectante em spray, passam cravos de mão em mão. Mil pequenos detalhes são discutidos e pensados. Posição, forma de passar a flor, quantidades, velocidade, intenção, música, ritmo…
Tempos de pausa, tempos de procura. Mais questões técnicas surgem, nomeadamente no computador usado para transferir gravações a telemóveis com auscultadores. Tempo demorado…calma. Preenchimento.
Estão todos descalços, de meias. Alguns sentem frio no chão de betão. Discute-se se devem pôr álcool nas solas dos sapatos para calçá-los.
Estão agora 3 performers em palco – Cheila Lima, Ricardo Machado e Pedro Salvador. Duas delas têm grandes auscultadores pretos nos quais ouvem gravações das pessoas entrevistadas por André. Vão declamando o que ouvem.
Ricardo, o bailarino, faz uma improvisação enquanto todos observam. Comentam-se as diferentes partes do que foi feito. Há conversa, há debate, há tomada de decisões.
Pausa para almoço, cada um no seu canto. Dá para aquecer comida em micro-ondas. No hall, junto à entrada, há cadeiras e uma janela grande para a rua deserta, mas na qual se avista uma farmácia aberta. Rimos da distância entre nós durante o almoço. Dá para conversar.
Depois do almoço aproveitamos raios de sol nas escadas à frente do teatro Thalia. Há muito vento. Ouvem-se pavões e papagaios porque estamos colados ao jardim zoológico. Muito pó e pólen no ar que reanima alergias. Chega um Lexus de alta cilindrada, do qual sai Manuel Heitor, Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Falando ao telemóvel entra no edifício em frente ao Teatro Thalia.
André motiva a sua trupe, “– Vamos recomeçar malta!”
Pedro pega na guitarra e testa alguns acordes.
Com a filha no porta-bebé ergonómico e de computador na mão, André trabalha em pé. A produtora está sentada ao computador, com várias caixas de email abertas enquanto Joana distribui Halls de mel e limão.
A sala centenária tem cravos espalhados pelo chão. Os performers mudam de roupa novamente. Começam a aquecer e a posicionar-se, reagindo aos inícios de choro da bebé. Alguns reveem os seus textos. Outros ouvem outra vez as entrevistas gravadas e uploadadas nos telemóveis. Cada um caminha para direções diferentes. O chão é frio, alguns estão de ténis que foram previamente desinfetados com álcool.
Ensaiam os seus textos em voz alta. Cruzam-se os passos, cruzam-se as falas. A sala fica cheia de palavras no ar. Tudo a tossir ao mesmo tempo. Risos!
Reiniciam o ensaio de onde acabaram ontem. Começa com Joana e André. Cada um sentado numa cadeira, de auscultadores. Carregam no play ao mesmo tempo. Interagem tal como na entrevista gravada. O André continua com a bebé ao peito que dorme profundamente enquanto ouvimos histórias de clandestinidade em tempos de ditadura.
Acaba a cena, mudança do cenário que necessita de uma mesa grande. Arruma-se tudo o que estava na mesa. Mesa ao centro do palco do Teatro Thalia.
É suposto filmarem na residência oficial do PM. Daí que há mais pedidos que vão sendo feitos à produtora presente: “– Jarras, copos, talheres, uma mesa grande mas que se possa dividir… E será que podemos imprimir aqui?” A produtora sai para telefonar.
Enquanto esperam, todos cruzam os braços nos seus casacos ou pulloveres. Está frio na sala grande.
Joana interpreta uma das entrevistas. Trata-se de uma mulher que foi “apanhada” pela PIDE e embarcada num carro em que os policias tiveram inicios de atos de abuso sexual, mas soube travá-los. Testa-se a possibilidade de acompanhar a declamação com música tocada ao vivo por Joana. Decidem que será sem.
Uma parte das filmagens deste espetáculo será feita na antiga sede da PIDE. Nem todos sabem onde se localiza. Aliás, as filmagens serão em vários locais chave referentes ao tempo da ditadura. A produtora relembra que se há ideias para locais novos é preciso autorizações.
Cheila interpreta um testemunho guineense que faz honras a Amílcar Cabral.
De computador na mão e de bebé ao colo, André contextualiza o espetáculo aos seus artistas.
De auscultadores na cabeça, Tereza interpreta um médico holandês que fez parte da luta anticolonialista e antifascista na Guiné.
Pequena pausa e preparação para ensaio corrido.
Ritmo da guitarra de Pedro. Coreografia dos 5 performers, pulsos levantados, “– 25 de abril sempre, fascismo nunca mais!”
Testemunhos de amor durante a luta contra o fascismo.
André contextualiza novamente o espetáculo, a sua motivação e o seu interesse por estes temas: “– Testemunhos de coragem, entrevistas a pessoas que disseram: nós não pactuamos com isto!”
Mas para iniciar este espetáculo há que começar pelo principio. O rasganço de um voto. “– Não denuncie o meu filho à PIDE!” Muitos heróis sem nome, sem identidade, sem rosto… Por agora não interessa o nome dado à nascença, mas sim o de todas as identidades falsas que tomaram.
Termina o corrido a meio porque são 18h e há que cumprir horários. Planeia-se o dia de amanhã e o inicio das filmagens na sexta-feira. Trocam de roupa. Preocupação com os transportes públicos para voltar a casa, “– Começa agora outra batalha do dia!”, diz uma das performers.” “– Alguém vai ao supermercado hoje?”, “– Preciso de uma coisa.”, “– Não é urgente, mas ontem fiz uma hora de fila e não aguento mais”.
Despedidas distantes. Adeus sem toque, mas com sorrisos.
O resultado estará disponível no dia 25 de abril, a partir das 15h30, nas plataformas online do Governo: no Portal do Governo, República Portuguesa – XXII Governo e Twitter.
Companhia Hotel Europa
Direcção e encenação: André Amálio e Tereza Havlíčková
Interpretes: Cheila Lima; Pedro Salvador; Ricardo Machado; Joana Guerra; Tereza Havlíčková; André Amálio.
Produção: Patrícia Cuan
Diagrafia #6
Ensaio Companhia Hotel Europa
Projeto ArtCitizenship
Alix Didier Sarrouy – CICS.NOVA